09/06/2014

Ana Drago e o debate na esquerda portuguesa

Esta é apenas uma parte do debate necessário, sobre os muitos temas a analisar.
Mas podemos começar por aqui. 




Ana Drago tem-se desdobrado em declarações, quer no seu blogue quer em entrevistas aos media corporativos dominantes.

Infelizmente, apesar do tom sincero e espontâneo a que nos habituou, não me parece que Ana avance com qualquer ideia que faça a diferença e seja verdadeiramente capaz de mobilizar novas energias à esquerda.

Vejamos alguns tópicos centrais da sua entrevista ao Público de 8/06/2014, seguidos do meu comentário. 

AVISO: Alerta-se os apreciadores de coisas superficiais que a leitura a seguir poderá ser indigesta, uma vez que usa argumentos sólidos e aprofundados q.b. (para um simples blogue)
Pensem bem antes de ler, e vejam se não preferem ficar pelas generalidades dos media corporativos ou "burgueses", continuando a chafurdar tranquilos no lamaçal em que este País está a ser transformado.

1. Justificando o suposto desvio de votos para o PCP

Ana Drago: "(...) o PCP funciona como um cofre. Vota-se, e o partido guarda o voto, faz uma defesa do Estado Social, da democracia (...)" 

Aparentemente para A.Drago o PCP terá essa capacidade de fixar o voto do povo mais fiel a Abril, mas não consegue ir além disso. Porque em sua opinião (noutro ponto da entrevista) o PCP se remete a uma atitude defensiva que não dá abertura para outros setores da sociedade.


Tem em parte razão A.Drago neste ponto, mas a forma como exprime a sua ideia, talvez para evitar ser truculenta, 
resulta numa grande falta de rigor.  É que, ao contrário do que afirma, o PCP não defende de forma coerente o Estado social. 

Se o fizesse, perante o brutal ataque da troika aos pensionistas, o PCP devia ter a REPOSIÇÃO DAS PENSÕES como palavra de ordem central nos seus cartazes da última campanha eleitoral e não apenas DOS SALÁRIOS como fez.


Devia ter também conduzido os sindicatos a chamarem os seus trabalhadores reformados para reuniões com vista a organizar o combate à violenta espoliação de que foram alvo, em vez de deixá-los entregues ao seu isolamento.

A verdade é que nem sequer no primeiro OGE do atual governo, que cortou os 13ª e 14ª meses, o PCP requereu a inconstitucionalidade, deixando ao BE e a alguns deputados do PS as "custas" dessa luta.


Só quem anda muito distraído não se apercebeu destes factos centrais. 

Que de modo algum podem ser considerados ocasionais num partido como o PCP, que planifica meticulosamente o discurso e as suas ações. A atuação do PCP nada tem de ocasional, antes resulta da sua total subordinação ao eleitoralismo dentro da lógica interna do sistema, que analiso no ponto seguinte.




2. Sobre uma suposta avaliação errada do BE ao rejeitar reunir-se com a troika


Ana Drago: "Sim, creio que sobrevalorizámos a raiva social. Foi isso que nos conduziu a não estarmos presentes na negociação com a troika. Não que eu acredite que teria sido possível convencer a troika da bondade de uma política de qualificação, ou de combate ao desemprego. Mas as pessoas sentiram que o Bloco tinha desistido de as representar." 

Não, Ana, não sobrevalorizaram nada a raiva social. A raiva existe, ao contrário do que concluem os vários partidos e analistas. Simplesmente, a análise é complexa, não simples. 


A sociedade portuguesa, como todas as sociedades capitalistas maduras, sofre duma profunda segmentação e fechamento de cada segmento nos seus próprios interesses. 
O que é fácil de perceber: o padrão neste modelo social assenta no egoísmo e na competição feroz. E quanto mais o País mergulha numa UE mercantil, mais isso se acentua. 

Na verdade, cada sindicato ou associação corporativa age na exclusiva defesa dos interesses que representa.  
Assim, quem não tem lóbi ou associação, quem tem dificuldade de se reunir e organizar, está basicamente "tramado". 

O governo vinculado à troika percebeu isso muito bem (mesmo que não perceba de quase mais nada) e serviu-se dos egoísmos sociais para virar cada setor contra os outros, fazendo um ataque seletivo aos reformados, à função pública e aos desempregados. 
Ora o que os partidos da oposição deveriam ter feito era responder também seletivamente, mobilizando os mais atingidos e tentado neutralizar o egoísmo dos restantes. 

Ao não o fazerem, ao diluirem os mais espoliados no "povo em geral", cairam na armadilha dos "troikistas" e foram penalizados, tanto mais quanto o seu "marketing sindical e social" não funcionou. 


Foi o caso do Bloco. Já o PCP dispõe da CGTP e do poder autárquico para fazer esse marketing de "luta" - que não passa de simulacro, mas é o suficiente para convencer alguns setores mais ou menos passivos (que, embora descontentes, não são ativistas e desconhecem a realidade dos processos de luta).

Ana Drago, tal como alguns analistas vulgares, ao invés de tirarem a conclusão certa, preferem uma análise redonda, simplista. 
Numa terminologia marxista, alguns diriam que se colocam numa posição "pequeno-burguesa conciliatória". 

Já numa linguagem sistémica, prefiro dizer que tais pessoas, numa lógica subordinada ao sistema, incapazes pelo seus compromissos e interesses de olharem de fora dele, não percebem que é preciso concentrar forças e atacar em jeito de guerrilha política os pontos vulneráveis das posições do inimigo de modo a desmoralizá-lo e, opostamente, dar moral ao povo. 


Ou seja, em vez de terem uma posição firme preferem ceder em toda a linha, ao mesmo tempo que esbracejam muito, num simulacro para iludir o "eleitorado".
  
3. Sobre a preferência do BE no diálogo com o PCP em detrimento do PS

Ana Drago: "Em relação ao PCP vejo essa proposta com muita simpatia. Mas devo dizer que (...) sempre houve uma grande dificuldade. Estive em várias reuniões entre as direções do Bloco e do PCP (...) são consultas formais, sem desenvolvimentos… Ter um diálogo com o PCP não impossibilita termos um diálogo com outros partidos disponíveis." 

Nesse ponto, concordo basicamente com A.Drago. 


Não concordo é que a alternativa seja iniciar este diálogo à esquerda com grupúsculos (se tanto lhes podemos chamar) como o Livre ou o 3D para abertura dum processo de unidade e luta ampla na sociedade portuguesa. 


Na minha opinião, o diálogo tem que ser, sim, com as bases, com as pessoas, e num processo de mobilização gradual. Começando necessariamente pelos mais espoliados que já identifiquei.


É um trabalho que devia ter começado há muito. Perdeu-se tempo, perdeu-se crença e no futuro será cada vez mais difícil. Mas é desse trabalho que depende toda e qualquer alteração do imobilismo de partidos como o PCP e o PS.


Ana Drago tem que pensar politicamente, não formalmente. Ou seja, é preciso perceber que a POLÍTICA é um sistema quase físico  de poder, ainda que os aspectos simbólicos criem nele algumas cortinas de fumo. 


Superestruturas sociais como os partidos movem-se quando o poder se move na base, ou seja, quando começam a desmoronar-se os alicerces em que assenta a sua influência.


Esse é o erro tanto da Ana Drago, como do BE, como de todos os que julgam que a principal forma de mover as cúpulas dos partidos consiste nos "bons apelos" e nas "boas propostas" de diálogo


Em sociedades complexas 
como Portugal, mas estáticas e moralmente  corrompidas por subsidiodependências e outros factores, as élites são inamovíveis dos territórios onde se fixaram, agarrando-se às suas pequenas clientelas como lapas, mesmo quando assistem à derrocada do conjunto da sociedade.   

4. Sobre o diálogo com o PS e as possíveis diferenças entre AJSeguro e ACosta

Ana Drago: "António Costa fez algumas críticas ao Tratado Orçamental. Isso é um bom sinal. Também já o ouvi tomar posições com as quais discordo. E lança-se numa disputa pela liderança sem tornar claro qual é o seu programa. O problema de desempenho do PS é, antes de tudo, programático. Esta ideia de que pode haver uma “austeridade inteligente”, lançada por António José Seguro deixa as pessoas sem alternativa." 


Mais uma vez, embora comece bem, mostrando dúvidas sobre o projecto de Costa, o tom geral de Ana Drago é inconsequente. Porque lhe falta análise e ligação à realidade quotidiana, neste caso da vida em Lisboa.


Na verdade, ACosta em Lisboa já forneceu dados mais que suficientes para se perceber o seu uso da traficância política sistemática. Apoiado presumivelmente por forças pouco recomendáveis como o Clube de Bilderberg - não por acaso a SIC,
claramente a TV portuguesa mais comprometida na solução "inteligente" que a UE já mostrou ser a sua aposta para prosseguir com a destruição do País - uma nova aliança entre a direita e o PS - essa mesma SIC há muito tempo que dá enorme cobertura televisiva a Costa. 

Em Lisboa, Costa manobrou e conseguiu nas eleições autárquicas secar tudo à sua volta, esvaziando as outras forças, bem como os "movimentos de cidadãos". Mas no terreno real, nada fez para deter a decadência da capital  como grande centro cultural e motor do desenvolvimento do País, que deveria ser.


Exemplos: As livrarias e as salas de cinema que vêm fechando, uma após outra. Os transportes públicos - um desastre em termos de articulação. Só quem não anda neles desconhece. O passageiro vê-se obrigado  a adquirir perlo menos 2 cartões recarregáveis diferentes, e isso só para Lisboa-cidade: um para comboio suburbano, outro para autocarro e metro, não havendo sequer uma integração eficaz de horários nem de linhas. Os bilhetes são caros e não há um apoio das ciclovias pelo transporte público (essencial no relevo acidentado de Lisboa).


Na generalidade dos indicadores Lisboa não avançou um passo REAL que fosse. 

Name it: apoios aos turistas, trânsito, urbanismo, espaços verdes, novas centralidades, pólos tecnológicos, espaços ribeirinhos, integração da Grande Lisboa - nada, ZERO.  

No entanto, paradoxalmente, a imagem de Costa tem saído reforçada junto do público através de pequenas habilidades de marketing como o corredor verde de Monsanto ou as ciclovias quase às moscas junto a Belém, amplamente propagandeadas pelos media corporativos. O que mostra também a profunda alienação da população e a falta de vivência da sua própria cidade.

A.Costa demonstrou à saciedade que é um politiqueiro. "Sabe-a toda", em termos de discurso e de marketing. E é isso que é preocupante, porque parece ser tudo o que ele tem para dar.


Ana Drago, para ser uma líder a sério e não mais um oportunista, terá que não ceder à tentação de apoiar o que é popular, aprender a sofrer a solidão dos líderes, recusando o que parece óbvio e sabendo optar ao invés pela travessia do deserto se preciso for, até ao momento em que a vida demonstre que tinha razão.   


5. Sobre a permanência do País na Zona do Euro


Ana Drago:  "O euro é das questões mais difíceis de discutir (...)   O processo de globalização cria dificuldades de ter uma estratégia de desenvolvimento desenquadrada do quadro europeu. (...) Sair do euro não é uma estratégia, pode é ser uma decisão que se tenha de tomar. Enfrentar a política de Merkel e reestruturar a dívida é que têm uma aceitação ampla na sociedade portuguesa, à esquerda." 


Mais uma vez, numa questão vital para o País, Ana Drago demonstra ser muito verdinha. Espero que aprenda rapidamente, a tempo de recuperar o terreno que as hesitações das élites oposicionistas fizeram perder em termos de capacidade de resistência.


O euro é desde há muito a base do projeto alemão para dominar a Europa. Começou por ser franco-alemão, mas hoje é tributário apenas da Alemanha e de alguns países do Norte.

Embora eu concorde que não é boa tá
tica sair do Euro por iniciativa própria e que é mais inteligente confrontar os líderes europeus com a sua responsabilidade até que fique a nu a natureza ditatorial do bloco burocrático mercantil da UE - que é o atual projeto europeu - não se  pode no entanto pôr a questão da forma vaga e imprecisa como o faz Ana Drago. 

Não podemos ficar por um vago: "talvez tenhamos que sair do euro". Portugal tem que ter um plano B bem preparado, e qualquer líder que se preze deve desenvolver desde já esse plano, respondendo a questões como: 


- Que  setores económicos privilegiar desde já na previsão duma eventual saída não só do euro como da UE? 

- Que grau de autonomia  energética, de transportes, de defesa, alimentar,  etc., o país deve garantir?  
- Em que setores de investigação e educação o país deve apostar? 
- Que relacionamentos internacionais alternativos buscar, de modo a salvaguardar a independência e a ter uma alternativa viável à UE?

Sobre tudo isto, Ana Drago como qualquer candidato a líder tem que antecipar as questões, não ser surpreendida pelo factos, por mais inesperados que eles venham a ser. E sobretudo, dar segurança aos cidadãos para que acreditem na alternativa que lhes propõe. 

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