18/06/2013

Professores portugueses resistem ao terror económico


Como professor que fui toda a minha vida profissional, não obstante já aposentado, só posso rever-me nesta luta da classe docente, traduzida numa greve que abrange dias de exames nacionais.
O governo, atropelando a lei da greve e pondo em causa as normas de segurança nos exames através do uso de equipas improvisadas, poderá até dizer que "levou a água ao moínho".

Mas os impressionantes 90% de adesão à greve, o semi-caos em que terá decorrido o processo de exames em muitas  escolas (ver relato acima) - processo que tinha  tradições de rigor milimétrico em Portugal , conheço-o bem pois fiz parte do Comissão Nacional de Exames do Ensino Secundário - tem de  considerar-se, face a todas as pressões a que os professores foram submetidos, uma enorme vitória desta classe profissional.

Vejamos, numa breve perspectiva, como se chegou à atual situação:


1. Numa sociedade capitalista cada grupo ou pessoa impõe os seus interesses através da competição, vista como a base do sistema. A desigualdade entre profissionais, carreiras, empresas, é considerada não só normal como desejável à luz da ideologia  dominante. "Sucesso" é ser-se rico, "grande empresário", ter um "bruto" carro ou mansão ou um alto salário.

2. Neste contexto, obedecendo à mesma lógica, cada grupo profissional se organiza solidariamente na defesa dos seus interesses. Os media  mercenários, que são quase todos, tratam de denegrir este "corporativismo" de tipo sindical.

Ou seja, para eles, há uma desigualdade boa, a dos altos cargos empresariais, políticos, ou administrativos, a de certos técnicos privilegiados, futebolistas, gabinetes de engenharia, arquitetura, advocacia, clínicas de luxo, etc., e há a desigualdade  a dos profissionais assalariados que se associam na defesa da sua profissão.

3. Obviamente, esta lógica corporativa tem um preço e o seu lado perverso. É por esse e outros tipos de fatores que o ensino em Portugal se tem vindo a degradar desde meados dos anos 80.

As causas? Complexas.


4. Umas, internas à escola:

Deficiências na seleção inicial dos professores, na avaliação da carreira, na formação contínua e na avaliação do progresso dos alunos. Não menos importantes, as deficiências na gestão escolar e de todo o sistema, onde se instalou muita gente oportunista e incompetente.

5. Outras, quiçá mais importantes, externas à escola:  desestruturação das famílias, aumento dos divórcios e da quantidade de famílias monoparentais; falta de tempo dos  pais para os filhos e falta de regras firmes o que, num clima social dissolvente, favorece vícios como o alcoól, o tabaco, as drogas e a libertinagem junto dos jovens. 

Sendo desagradável e politicamente incorreto, alguém teria de dizer alguma vez o que vou dizer agora: 

Se os critérios fossem sérios, provavelmente metade dos atuais professores, assim como dos gestores do sistema, teria que sair e escolher outra profissão; e talvez mais de metade dos alunos teria que recomeçar dum patamar mais baixo a sua formação, tais os vícios instalados no sistema.

6. Mas mesmo que tivesse um funcionamento 100% perfeito, a escola falharia na sua função, porque a “matéria-prima” que recebe – os alunos – quando chegam a ela vêm num estado lastimoso, na sua maioria: falta de boas regras de relacionamento, mau domínio de funções básicas de análise, expressão e cálculo, além da escassa motivação.

A plena resolução destes problemas exigiria um reforço das equipas docentes e de apoio sócio-educativo aos alunos e suas famílias. Ora é justamente o contrário que está a acontecer, com a redução dos papéis da escola pública e uma política de cortes cegos. 

7. Por outro lado, as metodologias pedagógicas inovadoras testadas por mais de um século como o construtivismo, a escola ativa de Freinet, o Trabalho de Projeto e a Investigação Ação-Participada, combinadas com a Pedagogia por Objetivos e tantos outros métodos científicos, foram sendo adulterados por maus profissionais tanto na base como no topo do sistema, desde a sala de aula às hierarquias que planificam, passando por muitos burocratas das comissões executivas.

8. Resultado: um ensino que, embora não terceiro-mundista (nem de longe) descambou em largo número de turmas na cabulice, na pura memorização, no laxismo, tornando a escola um local desagradável, incapaz de concorrer com a internet, as consolas e a TV. Tudo isto, a par da dominância dum "eduquês" pretensioso, mas oco, entre os teóricos do sistema educativo, criou o caldo de cultura ideal para a investida sobre o sistema duns pseudo-sapientes que não passam de analfabetos pedagógicos, defensores de soluções "fáceis", simplórias, que na verdade são apenas o regresso a modelos dirigistas, rígidos e despersonalizados, baseados na memorização mecânica e no respeito servil à autoridade pela autoridade, seja essa autoridade assumida por um incompetente presunçoso ou por um profissional qualificado.


9. É exatamente essa linha "tradicionalista", na verdade prepotente e incompetente,  a seguida pelo atual ministério da educação (ME).
O contraponto por parte dos sindicatos - uma defesa das carreiras sem a devida avaliação, ou o laxismo nas regras, são a outra face da moeda.

São falsas alternativas que nunca baterão certo, estas em que o ME e os sindicatos corporativos se empenham e degladiam.

10. Os sindicatos, em particular o principal deles, a Fenprof, onde domina a linha sindical do PCP, além de terem uma resposta corporativa, cultivam há muito uma linha conciliatória de aceitar pequenas migalhas em troca de “manter o sistema” sem muitas ondas.

O seu líder principal traiu a luta há uns 6 anos atrás, após as grandes manifestações que puseram na rua 150.000 professores - quase toda a classe - e  o processo fugiu claramente ao controle da Fenprof. Questões como o horário de trabalho, a autonomia escolar, a estabilidade das carreiras, estavam em causa, assim como o desrespeito e a total demagogia por parte do ME, com práticas bárbaras como a separação  puramente arbitrária dos professores em "titulares" e "não-titulares" com o fito apenas de gerar divisionismo numa categoria onde todos já eram efetivos há décadas!

O movimento havia-se gerado espontaneamente em várias regiões, de tal modo que os controleiros sindicais não conseguiram travá-lo. Mas acabam por infiltrar-se nele para, logo que abrandou, o desviarem para acordos capitulacionistas com o ME, que negavam o sentido da luta e desmoralizavam a classe - mais uma vez.

11. É previsível que o mesmo ocorra agora. O referido dirigente da Fenprof, ao  sair da última reunião com o ME, metia "os pés pelas mãos", exibindo nervosismo ao tentar explicar a greve. 

Quem é viciado no corporativismo eleiçoeiro, só pode sentir-se desconfortável com uma luta mais radical, como esta teria que ser inevitavelmente face à tremenda instabilidade lançada na carreira, aos enormes cortes nos salários e pensões que vêm cumular anos sucessivos de perdas, e ainda o aumento do horário em 4 horas semanais.

Um pacote que é uma brutal regressão civilizacional, inimaginável há 30 ou 40 anos atrás, quando fantásticos progressos tecnológicos e organizacionais no "1º Mundo" prometiam todo o contrário e se previa, isso sim, uma redução para metade da jornada do trabalho assalariado, de modo a criar mais empregos e facilitar a vida às famílias.

Carregando o fardo dessa traição de 2007/2008, estes sindicalistas já quase não têm margem de manobra para capitularem de novo, ainda por cima face a um governo abusador, com práticas grosseiramente ilegais, como o não pagamento dos subsídios de férias determinado pelo Tribunal Constitucional.

12. Não obstante as contradições que possa ter, a luta da categoria docente é hoje a fronteira entre a barbárie da troika UE-FMI, e a dignidade deste país antigo, tranquilo e civilizado, pioneiro na conquista de direitos humanos como o direito à vida, à segurança pessoal e às liberdades fundamentais.

13. O prejuízo resultante do adiamento dum exame por 15 dias, que os propagandistas do governo vêm empolando de forma grotesca e ignorante, além de perfeitamente recuperável até numa 2ª chamada já calendarizada, nem se compara com a destruição de direitos civilizacionais como o desemprego prometido para esses 30.000 funcionários, ou os novos cortes no poder de compra de 4,5 mil milhões de euros que porão  em estado de coma a economia do País.

14. É necessário ter a exata consciência de que esta luta, mais que por direitos profissionais,  é a frente principal onde se situa neste momento o combate  contra as forças que visam provocar a degradação social e a total dependência do exterior, levando o País pelo caminho da Grécia e, em última instância, ao derrube das últimas muralhas que defendem a democracia e a independência nacional.


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