04/02/2014

O SENTIDO DO ANACRONISMO DAS PRAXES

Este é o debate do momento nos media portugueses, despoletado pela tragédia da praia do Meco em que morreram seis  jovens duma universidade privada, quando simulavam os rituais a aplicar aos novos alunos.


OS ARGUMENTOS MAIS COMUNS CONTRA AS PRAXES...

O sinistro facto gerou um natural movimento de repúdio contra essa aberração que são as praxes, com os seguintes argumentos:

- As praxes são humilhantes e, ao contrário do que dizem os seus promotores, elas não integram, antes estupidificam e tornam submissos os alunos ao imporem-lhes atos humilhantes e muitas vezes perigosos, através duma coação chantagista

- As praxes são uma coisa anacrónica, reminescência dum passado tradicionalista e conservador que hoje não faz sentido.

- As autoridades universitárias, ao não imporem regras que limitem os abusos, estão a ser coniventes

- Vários dos comportamentos impostos aos "caloiros" e o tipo de organização que enquadra as praxes chegam a assumir um nível criminoso, infringindo direitos pessoais básicos, intocáveis. e indisponíveis

... E UMA ANÁLISE MAIS PROFUNDA

Concordo com tudo isso. Mas é preciso ir mais fundo na análise e perceber o que é que a persistência de hábitos tão boçais tem a ver com a estrutura e a conjuntura atual da sociedade portuguesa.

(para ler mais, clique abaixo)


As praxes - que no meu tempo de estudante e nas múltiplas  universidades de Lisboa não só não existiam como eram ridicularizadas e repudiadas pela comunidade académica, e não fizeram falta nenhuma - são um ritual iniciático. Os seus defensores têm razão quando dizem que elas se destinam a "ajudar" o estudante a inserir-se num determinado sistema.

Só lhes falta esclarecer que sistema é esse.

E também não é apenas por inércia que as direções das universidades se abstêm de interferir. Há interesses objetivos da sua parte - todos fazem parte do tal sistema.

Assim como não é por acaso que a intensidade e estupidificação das praxes se acentua em dois tipos de faculdades: as privadas e as do interior do país.

Na verdade, as escolas superiores não são todas iguais. Há uma grande diferença de qualidade entre as escolas públicas e privadas em Portugal. Com exceção da U.Católica - privada também - a grande maioria das faculdades privadas tem um nível mais baixo que as públicas, e acolhem os estudantes mais fracos, os que pelo concurso nacional não conseguem entrar numa pública. Análise semelhante - com algumas exceções - poderia ser feita relativamente às escolas superiores da província.

AFINAL QUE SISTEMA É ESSE?
Então, por partes.

Que sistema é esse de que falam os praxistas? E porquê as praxes são mais importantes e estúpidas no tipo de faculdades supra referido ?

A última pergunta é a mais fácil de responder. As escolas com menor qualidade tentam aparentar um estatuto que na verdade não têm, valorizando os rituais iniciáticos e empolando-os de forma artificial.

E não custa entender porquê tantos estudantes e famílias caem no engodo. Quem foi aluno universitário sabe o quanto se investe num curso, e como o primeiro dia em que se pisa a nova escola é emocional. Não é difícil a um qualquer idiota aproveitar-se dessa pré-disposição favorável para abusar.

Quanto ao sistema, ele é muito mais que o sistema de praxes ou o próprio sistema académico.

Na verdade, a aprendizagem numa escola superior é encarada como o início duma promissora carreira profissional. Num país de "doutores e engenheiros", no passado acontecia que possuir o "canudo" era mais que meio caminho para um bom emprego. É verdade que hoje já não é assim, de todo, e já não o era antes da crise.

Mas uma coisa é a "realidade real", outra as expectativas que as pessoas engendram na sua cabeça, onde muitas vezes os mitos do passado sobrevivem à própria realidade.

Para quem profissionalmente ainda não é nada, tirar um curso superior aparece como janela de salvação.

Os ritos iniciáticos são uma escalada hierárquica que parte do zero (o caloiro) para subir degrau a degrau até ao veterano ou "doutor".

No fundo, é uma antecipação das hierarquias profissionais. Que começam no candidato a um emprego que passa depois a estagiário, a seguir a profissional precário, se tiver sorte passa ao quadro, culminando, se (e só se) tiver "amigos" e/ou alguma sorte, num dos privilegiados que ganham muito bem.

Além disso, grande parte dos técnicos - médicos, enfermeiros, engenheiros, arquitetos, advogados, magistrados, economistas, professores, etc. - são enquadrados por ordens institucionalizadas que não só defendem com grande ardor corporativo a respectiva profissão, como dificultam o acesso de novos profissionais (o caso dos médicos é evidente, chegando ao ponto de impedirem a abertura de novas faculdades de medicina), através duma série de provas e obstáculos diversos, sempre com o pretexto de que se trata de "aperfeiçoamentos" e duma "seriação pela qualidade".

Como se vê, há quase uma reprodução a papel químico por parte dos praxistas - ainda que duma forma primária, como é próprio de pessoas em fase estudantil.

A CONJUNTURA DEPRIMIDA EXPONENCIA OS FACTORES

Na atual conjuntura de crise e perante a elevadissima probabilidade de os recém-formados não terem lugar no mercado da respetiva profissão, poder-se-ia pensar que nada disto faz sentido. E não faz.

Mas nem sempre a realidade se impõe de imediato. O mundo escolar é um mundo à parte, bastante artificial, que tende a recriar as suas próprias realidades, muitas vezes assentes em meras fantasias.

É muito fácil aproveitar-se das expectativas dos jovens e suas famílias e prometer-lhes paraísos futuros. Quanto menos competente e lúcido for o jovem (e a sua família) mais fácil é o engodo.

Uma crise só aumenta a tensão ao aumentar a competitividade.pelas vagas, quer no mundo do trabalho quer no mundo académico (por antecipação daquele).

Por outro lado, a degradação e a insegurança que a crise gera, pode provocar em pessoas impreparadas o refúgio em ideologias securitárias e em grupos fechados do tipo seitas (religiosas, académicas, étnicas, regionalistas,  políticas, clubísticas, etc.).

No caso das universidades, o anacronismo reacionário das praxes e das pequenas máfias que por vezes as enquadram tem essa lógica securitária e de refúgio, também.

As relações sociais são complexas, e nem sempre prevalece o lógico, o que deveria ser.

NOTA: Um aspecto importante relacionado com este tema é a complexidade e especialização crescente dos saberes. Trata-se duma realidade universal. A tendência é, perante o volume de conhecimentos necessários às profissões especializadas, que se acentue a subespecialização dentro de cada especialidade. O que acentua o fosso entre o vulgar cidadão e os especialistas, levando a que estes - principalmente em sociedades com baixa mobilidade e fraca dinâmica cultural - assumam comportamentos elitistas e até abusivos, aproveitando a rigidez e a complexidade do sistema (artificalmente induzida) para se fazerem pagar muito bem.
É esse tipo de elitismos e de abusos que as máfiazinhas das praxes, ainda que duma forma grotesca, simbolicamente antecipam e representam.



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